Conversa de cabeleireiro (ou uma mui duvidosa incursão pela ficção)


Toda a sua vida girara em torno de frascos de acetona, de verniz de cores múltiplas, de limas já desgastadas pelo tempo e pelo desencanto, de tesourinhas minúsculas e de toda a parafernália de instrumentos que transformam umas mãos rudes em mãos encantadoras, dignas da mais ilustre princesa.
(Nem mesmo ela percebia como se operavam esses milagres....)
Agora já não havia escapatória possível. Cansara-se daquelas conversas fúteis do salão, dos mexericos de sábado de manhã, das senhoras já quase autênticos dinoussauros que insistiam em pintar o cabelo de cores ridículas de fazer corar o próprio Picasso, do facto de não esperarem nada mais dela que não as tiradas corriqueiras:
"Vai arranjar a mão ou só pintar?"
"Vai ser manicure francesa?"
"Também vai arranjar o pézinho?"
Se ela abrisse a boca para discutir a crise petrolífera mundial ou a questão israelo-palestiniana (os temas que mais lhe interessavam...pensava até estudar Relações Internacionais um dia), o desfecho mais provável seria duvidarem da sua sanidade mental, abrirem a boca de estupefacção e, passado o choque inicial, continuarem a falar da prole das monarquias europeias e da condição muito duvidosa das plebeias.
Ainda lançou um último olhar sobre todo o kitsch em que se transformara a sua vida e deitou ao lixo todos os vestígios desse destino que queria por força esquecer, passando quiçá uma espécie de acetona milagrosa que eliminasse qualquer vínculo ao passado.
Iria partir - ainda sem rumo definido - mas com a convicção de que poderia ser muito mais do que um rótulo que insistiram em colocar-lhe.
Enquanto descia a rua não pôde deixar de sentir aquele calafrio da expectativa perante o desconhecido e, esquecendo-se de tudo o que aprendera até então, começou a roer as unhas.

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